_ Júlio! Ô Júlio! Ô JÚLIO!!!
Era sempre assim. Toda vez que Sara mandava Júlio lavar a louça, ele sumia. Já estava quase na hora do jantar e as vasilhas usadas no almoço ainda estavam sujas e empilhadas na pia. Onde estava o marido? Ah, mas ela ia fazer um escândalo quando ele chegasse em casa! Sara estava cansada de arcar com as tarefas domésticas sozinha. Combinado era combinado! Dessa vez, ela ia dar-lhe um belo de um cacete para ele aprender a não dar uma de João sem braço para fugir de suas tarefas.
_ JUUUUULIOOOOO!!!!
Mas parecia que Júlio tinha tomado um chá de sumiço. Procurou em todos os cômodos da casa e no quintal, mas ele não estava em lugar nenhum.
Quando Sara estava prestes a gritar seu nome mais uma vez, deparou-se com o gafanhoto. Estava prestes a tomar um susto, mas o susto parou no meio do caminho. Aquele bicho não era normal. Ele era grande demais! Parecia ter mais de dez centímetros de comprimento e era... estranhamente familiar. Sara chegou mais perto e teve a sensação de que conhecia o olhar daquele inseto.
_ Júlio?
O gafanhoto abriu e fechou as asas rapidamente.
_ Júlio?!
O mesmo movimento, agora acompanhado por um ruído estridente.
_ MEU DEUS JÚLIO, VOCÊ VIROU UM GAFANHOTO!
Sara entrou em desespero.
imagem por @georgiadelotz |
Começou a andar de um lado para o outro, perplexa com a situação. Aquilo realmente era possível? Um ser humano se transformar em um bicho de uma hora para a outra? Como isso aconteceu? Será que seu marido era um bruxo, que nem aquele padrinho descabelado do Harry Potter? Teria ele a coragem de se transformar em bicho para fugir da louça suja? Não, não era possível. Ele não teria conseguido esconder a bruxaria por tanto tempo...
Por mais que nada daquilo fizesse sentido, Sara sentia uma espécie de deja-vu. Essa história lhe soava familiar... Onde Sara tinha visto um homem se transformaram em inseto antes?
_ Puta merda, o livro da Dona Carminha!
Dona Carminha foi sua professora no último ano do ensino médio. Em um dos trabalhos, ela pediu que a turma lesse e resenhasse um tal livro que começava contando a história de um homem que acordava transformado em barata ou algo do tipo. Sara havia achado a história muito chata, desistiu do livro logo nas primeiras páginas e acabou entregando uma resenha qualquer que copiou da internet. Óbvio que a professora descobriu e lhe deu zero pelo trabalho. Ela pensava que aquele zero era punição suficiente, mas agora estava claro que a vida discordava. Era isso: Deus havia transformado seu marido em inseto para lhe ensinar a cumprir com suas obrigações e a não cometer plágio (palavra que a Dona Carminha escrevera com caneta vermelha e letras garrafais na capa da sua resenha).
_ Ah, meu Deus, é tudo culpa minha! Fui eu que praguejei quando a professora de português mandou a gente ler aquele livro chato do homem que vira barata! Se eu não tivesse copiado aquele troço... Meu Deus... Júlio, você tá com fome? O que você vai comer, Júlio, eu não sei o que esse bicho come. Não que eu esteja chamado você de bicho, não é isso. Ah, meu Deus... Eu vou te tirar daí, Júlio, aguenta firme que eu vou te tirar daí.
Sara corre até o seu quarto e, depois de revirar algumas tralhas acumuladas, acha o livro jogado em um canto do guarda-roupas. A metamorfose, escrito por Franz Kafka. A resposta só podia estar ali. Agora, ela desejava mais do que tudo não ter largado o livro depois das primeiras páginas. Se tivesse lido, saberia o que fazer para trazer Júlio de volta a forma humana. Afinal, todas as histórias terminavam bem. O tal do homem devia volta a forma humana no final. Se bem que... no Titanic o navio afundava…
_ Mas Titanic não é livro, é filme, que nem Harry Potter. Já sei que isso não é caso de filme, é caso de livro! Então tudo bem, vai ficar tudo bem - ela disse em voz alta, mais para convencer a si mesma do que por qualquer outro motivo.
Começou a folhear as páginas rapidamente, começando pelo final, mas aquele homem escrevia de um jeito muito chato. Era impossível entender o que estava acontecendo apenas por alguns trechos e Sara não conseguia se concentrar. Logo, seus pensamentos se enveredaram por outros caminhos, até que lhe ocorreu que Júlio poderia se assustar e sair de cima da geladeira para pedir socorro. "E se alguém pisar em cima dele?", pensou.
Ainda com o livro da mão, Sara correu de volta até a cozinha. Para o seu alívio, o gafanhoto ainda estava lá, na mesma posição. Olhou para o livro em sua mão, para a pia abarrotada de louça suja e para o gafanhoto, que mexeu as patinhas e fez aquele barulho outra vez. A realidade caiu sobre ela com força. Se ninguém acreditasse nela, o que seria de seu marido? O que os médicos poderiam fazer para salvá-lo? E se aquilo não tivesse cura e ele ficasse daquele jeito para sempre? Os médicos liam Franz Kafka na faculdade?
Sara não aguentou a pressão de tantas dúvidas. Desabou-se a chorar. O gafanhoto a fitava em silêncio.
Quando o choro finalmente cessou, ela se levantou e passou um pouco de água nos olhos, secando-os em seguida com a manga da blusa. Respirou fundo, depois mais fundo. Ela não podia sucumbir. Precisava ser forte, precisava encontrar uma forma de buscar ajuda. Pensou em postar uma foto do marido engafanhotado no Instagram. Talvez aquilo gerasse uma mobilização popular e...
Seus pensamentos foram interrompidos pelo barulho de passos. Alguém estava se aproximando. Seria um ladrão que se aproveitaria do seu momento de desespero para assaltar a casa? Ou um membro da sociedade protetora dos animais que identificou a metamorfose com um radar e estava vindo resgatar seu marido? Sara estava cansada demais para pensar. Não sabia o que fazer, nem como reagir. Só queria que aquele pesadelo acabasse. Respirou fundo e olhou mais uma vez para os olhos do marido-gafanhoto. Virou-se para a porta e... tomou um susto.
_ JÚLIO??????
_ Que foi?
Sara olha para o marido, olha para o gafanhoto e outra vez para o marido.
_ Nada, não, nada não... On-onde você tava? Te procurei na casa inteira.
_ Fui ajudar a dona Cleide a carregar as sacolas de compra.
_ Ah...
Nesse momento, o gafanhoto pula da geladeira e sai pela janela. Júlio parece não ver, mas Sara o segue com os olhos.
_ Ow, o que você tá fazendo aí, segurando esse livro com essa cara de jacu?
_ N-nada não...
_ Ah, então sai da frente que eu preciso lavar essa louça aí que já tá quase na hora da janta, né?
Esse post é uma crônica escrita com base na notícia "Dona de casa se assusta ao encontrar gafanhoto 'gigante' em cima de geladeira em MS", publicada pelo G1 no dia 29/06/2020. Todas as informações aqui contidas e que vão além da notícia são fictícias e fazem parte do projeto Notícia Crônica (saiba mais sobre o projeto clicando aqui).
_ Júlio! Ô Júlio! Ô JÚLIO!!!
Era sempre assim. Toda vez que Sara mandava Júlio lavar a louça, ele sumia. Já estava quase na hora do jantar e as vasilhas usadas no almoço ainda estavam sujas e empilhadas na pia. Onde estava o marido? Ah, mas ela ia fazer um escândalo quando ele chegasse em casa! Sara estava cansada de arcar com as tarefas domésticas sozinha. Combinado era combinado! Dessa vez, ela ia dar-lhe um belo de um cacete para ele aprender a não dar uma de João sem braço para fugir de suas tarefas.
_ JUUUUULIOOOOO!!!!
Mas parecia que Júlio tinha tomado um chá de sumiço. Procurou em todos os cômodos da casa e no quintal, mas ele não estava em lugar nenhum.
Quando Sara estava prestes a gritar seu nome mais uma vez, deparou-se com o gafanhoto. Estava prestes a tomar um susto, mas o susto parou no meio do caminho. Aquele bicho não era normal. Ele era grande demais! Parecia ter mais de dez centímetros de comprimento e era... estranhamente familiar. Sara chegou mais perto e teve a sensação de que conhecia o olhar daquele inseto.
_ Júlio?
O gafanhoto abriu e fechou as asas rapidamente.
_ Júlio?!
O mesmo movimento, agora acompanhado por um ruído estridente.
_ MEU DEUS JÚLIO, VOCÊ VIROU UM GAFANHOTO!
Sara entrou em desespero.
imagem por @georgiadelotz |
Começou a andar de um lado para o outro, perplexa com a situação. Aquilo realmente era possível? Um ser humano se transformar em um bicho de uma hora para a outra? Como isso aconteceu? Será que seu marido era um bruxo, que nem aquele padrinho descabelado do Harry Potter? Teria ele a coragem de se transformar em bicho para fugir da louça suja? Não, não era possível. Ele não teria conseguido esconder a bruxaria por tanto tempo...
Por mais que nada daquilo fizesse sentido, Sara sentia uma espécie de deja-vu. Essa história lhe soava familiar... Onde Sara tinha visto um homem se transformaram em inseto antes?
_ Puta merda, o livro da Dona Carminha!
Dona Carminha foi sua professora no último ano do ensino médio. Em um dos trabalhos, ela pediu que a turma lesse e resenhasse um tal livro que começava contando a história de um homem que acordava transformado em barata ou algo do tipo. Sara havia achado a história muito chata, desistiu do livro logo nas primeiras páginas e acabou entregando uma resenha qualquer que copiou da internet. Óbvio que a professora descobriu e lhe deu zero pelo trabalho. Ela pensava que aquele zero era punição suficiente, mas agora estava claro que a vida discordava. Era isso: Deus havia transformado seu marido em inseto para lhe ensinar a cumprir com suas obrigações e a não cometer plágio (palavra que a Dona Carminha escrevera com caneta vermelha e letras garrafais na capa da sua resenha).
_ Ah, meu Deus, é tudo culpa minha! Fui eu que praguejei quando a professora de português mandou a gente ler aquele livro chato do homem que vira barata! Se eu não tivesse copiado aquele troço... Meu Deus... Júlio, você tá com fome? O que você vai comer, Júlio, eu não sei o que esse bicho come. Não que eu esteja chamado você de bicho, não é isso. Ah, meu Deus... Eu vou te tirar daí, Júlio, aguenta firme que eu vou te tirar daí.
Sara corre até o seu quarto e, depois de revirar algumas tralhas acumuladas, acha o livro jogado em um canto do guarda-roupas. A metamorfose, escrito por Franz Kafka. A resposta só podia estar ali. Agora, ela desejava mais do que tudo não ter largado o livro depois das primeiras páginas. Se tivesse lido, saberia o que fazer para trazer Júlio de volta a forma humana. Afinal, todas as histórias terminavam bem. O tal do homem devia volta a forma humana no final. Se bem que... no Titanic o navio afundava…
_ Mas Titanic não é livro, é filme, que nem Harry Potter. Já sei que isso não é caso de filme, é caso de livro! Então tudo bem, vai ficar tudo bem - ela disse em voz alta, mais para convencer a si mesma do que por qualquer outro motivo.
Começou a folhear as páginas rapidamente, começando pelo final, mas aquele homem escrevia de um jeito muito chato. Era impossível entender o que estava acontecendo apenas por alguns trechos e Sara não conseguia se concentrar. Logo, seus pensamentos se enveredaram por outros caminhos, até que lhe ocorreu que Júlio poderia se assustar e sair de cima da geladeira para pedir socorro. "E se alguém pisar em cima dele?", pensou.
Ainda com o livro da mão, Sara correu de volta até a cozinha. Para o seu alívio, o gafanhoto ainda estava lá, na mesma posição. Olhou para o livro em sua mão, para a pia abarrotada de louça suja e para o gafanhoto, que mexeu as patinhas e fez aquele barulho outra vez. A realidade caiu sobre ela com força. Se ninguém acreditasse nela, o que seria de seu marido? O que os médicos poderiam fazer para salvá-lo? E se aquilo não tivesse cura e ele ficasse daquele jeito para sempre? Os médicos liam Franz Kafka na faculdade?
Sara não aguentou a pressão de tantas dúvidas. Desabou-se a chorar. O gafanhoto a fitava em silêncio.
Quando o choro finalmente cessou, ela se levantou e passou um pouco de água nos olhos, secando-os em seguida com a manga da blusa. Respirou fundo, depois mais fundo. Ela não podia sucumbir. Precisava ser forte, precisava encontrar uma forma de buscar ajuda. Pensou em postar uma foto do marido engafanhotado no Instagram. Talvez aquilo gerasse uma mobilização popular e...
Seus pensamentos foram interrompidos pelo barulho de passos. Alguém estava se aproximando. Seria um ladrão que se aproveitaria do seu momento de desespero para assaltar a casa? Ou um membro da sociedade protetora dos animais que identificou a metamorfose com um radar e estava vindo resgatar seu marido? Sara estava cansada demais para pensar. Não sabia o que fazer, nem como reagir. Só queria que aquele pesadelo acabasse. Respirou fundo e olhou mais uma vez para os olhos do marido-gafanhoto. Virou-se para a porta e... tomou um susto.
_ JÚLIO??????
_ Que foi?
Sara olha para o marido, olha para o gafanhoto e outra vez para o marido.
_ Nada, não, nada não... On-onde você tava? Te procurei na casa inteira.
_ Fui ajudar a dona Cleide a carregar as sacolas de compra.
_ Ah...
Nesse momento, o gafanhoto pula da geladeira e sai pela janela. Júlio parece não ver, mas Sara o segue com os olhos.
_ Ow, o que você tá fazendo aí, segurando esse livro com essa cara de jacu?
_ N-nada não...
_ Ah, então sai da frente que eu preciso lavar essa louça aí que já tá quase na hora da janta, né?
Esse post é uma crônica escrita com base na notícia "Dona de casa se assusta ao encontrar gafanhoto 'gigante' em cima de geladeira em MS", publicada pelo G1 no dia 29/06/2020. Todas as informações aqui contidas e que vão além da notícia são fictícias e fazem parte do projeto Notícia Crônica (saiba mais sobre o projeto clicando aqui).
21 julho 2020
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natalia non grata /
notícia crônica
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HAHAHHAHHAHAHA MININA AMEI??!!! me fez lembrar um filme horrível que meu marido adora chamado A mosca. Adorei o projeto, estou ansiosa por ler mais, amo crônicas <3
ResponderExcluirNunca assisti esse filme, mas acho que já ouvi falar. Fico feliz que você tenha gostado do projeto ♥
ExcluirNATÁLIA O TANTO QUE EU AMEI ISSO!!!!!!!!!!!!!
ResponderExcluir♥♥♥
ExcluirHahahahaha
ResponderExcluirGostei muito!
Fico feliz por você ter gostado :D
ExcluirMuito boa a crônica! O final foi espetacular.
ResponderExcluirGostei do blog e estarei por aqui agora. Esteja à vontade para visitar o meu blog também.
Bom fim de semana!
Jovem Jornalista
Instagram
Até mais, Emerson Garcia
Obrigada :)
ExcluirEu adorei o texto. Essa notĩcia do Gafanhoto me passou despercebida haha fui ler claro.
ResponderExcluirMe lembrei da época que li Kafka, preciso reler alias, pra ver como seria a minha percepção agora depois de tanto tempo.
http://colorindonuvens.com/
Que bom que você gostou ♥
ExcluirO legal dessas notícias é que elas costumam passar despercebidas mesmo. Tentei ler Kafka quando ainda era muito nova e não consegui, achei a leitura arrastada. Mas peguei a Metamorfose para ler há pouco tempo e amei! É engraçado como a percepção da gente realmente muda.
Até hj não li Kafka, mas li "A paixão segundo GH" da Clarice Lispector que tem uma certa ligação. A personagem da tua crônica deu uma boa bugada hahahha
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