Minha mãe sempre teve alguns livros em casa e eu lembro de passar bastante tempo mexendo neles, procurando alguma coisa bacana para ler. Geralmente eu me apegava aos livros da coleção Literatura em Minha Casa, que minha mãe ganhou quando a biblioteca da escola onde ela trabalha doou os livros que não usavam o (não mais tão) Novo Acordo Ortográfico. Passeando por todas as capas e textos, eu sempre olhava de rabo de olho para um livrinho fino, da lombada roxa. Sempre espreitando, esperando que chegasse a vez dele. Nunca chegava, porque eu fazia questão de tampar sua capa colocando outro livro por cima e ignorava completamente o fato de que lê-lo era uma opção.
Aquela famosa frase "não julgue o livro pela capa" nunca funcionou aqui. Aquela lombada roxa trazia consigo um fantasma debochado, cujos cabelos se confundiam com a copa de uma árvore seca, em meio a letras amarelas que só faziam aquilo ficar mais e mais bizarro. Eu tinha pavor dessa capa. Lembro de ser uma criancinha medrosa, que chorava toda vez que, em um descuido, minha mãe deixava a capa daquele livro à mostra.
Se essa capa não faz você sentir uma coisa muito ruim, tá errado |
O tempo passou, o medo também, mas aquela lembrança amarga do ranço daquele livro me perseguiu. Dizia aos quatro cantos que a alta literatura brasileira era uma vaidade inacessível para grande parte do povo que faz parte desse país (e ainda penso isso) e que não merecia ser lida, muito menos digna de apreço. Sim, eu me sentia digna de achar Machado de Assis overated. E isso perdurou até o dia em que a professora de português da oitava série exigiu que a turma toda lesse o tal do Memórias Póstumas de Brás Cubas. E eu li.
E continuei achando uma bosta!
Hoje, depois de adquirir um pouquinho mais de conhecimento e a plena noção de que não sei porra nenhuma, consigo perceber a genialidade por trás dessa obra. A ironia, o escárnio, o desprezo pela condição humana e o deboche são trejeitos incrustados em mim de uma maneira tão marcante quanto estão nessa obra. Eu tinha tudo para amar esse livro, mas não amei.
E por quê? Porque minha professora de português me obrigou a ler o livro.
Lembro que essa professora chegava na sala e escrevia uma frase no quadro, do tipo "Maria e João foram à praça passear" e, em seguida, perguntava para a turma "Qual o sujeito da frase?". Eu era a única que sabia a resposta, porque era uma das poucas que estavam fazendo cursinho (gratuito!) para entrar na escola técnica. Uma vez ela pediu para que eu parasse de responder a essas perguntas e deixar os outros alunos tentarem, mas toda aquela dinâmica não era sobre tentar! Era sobre aprender! Mas ninguém aprendia naquela sala, nem em nenhuma das outras sete salas que tínhamos frequentado durante o ensino fundamental. Nessas salas, a lógica sempre foi mais sobre dar a resposta certa do que sobre aprender.
Se a gente não sabia qual era o sujeito da frase "Maria e João foram à praça passear", como íamos saber o que Brás Cubas quis dizer com o tal "ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico com saudosa lembrança estas memórias póstumas"?
Foto da réplica da biblioteca de Juscelino Kubitschek, no Memorial JK. |
Eu tiro duas conclusões principais desse post: 1) o ensino público no Brasil precisa ser repensado, não perdendo tempo com aquela merda de discussão idiota sobre escola sem partido (falha nos seus próprios termos lógicos), mas pensar as possibilidades metodológicas e propor uma mudança concreta nos conteúdos; e 2) gostar ou não de um livro está muito relacionado ao momento em que estamos vivendo. Obrigar um jovem que nunca teve contato com a leitura a consumir um livro clássico, com colocações e vocabulários que não são acessíveis a ele, pode fazer com que essa pessoa nunca mais queira ler um livro - da mesma forma que o mesmo jovem pode ler um livro juvenil e tomar gosto pela leitura (saudades série vaga-lume).
Para encerrar, gostaria de parabenizar o design que fez a capa desse livro: obrigada pelo trauma ¯\_(ツ)_/¯
Atualização (18/09/2021): não acho justo chamar esse livro de "uma bosta" como eu disse lá em cima. Hoje consigo enxergar o valor cultural do livro e a genialidade das alegorias que Machado de Assis colocou nesse livro. De fato, é uma obra excelente e muito divertida de ler - desde que você tenha maturidade para compreender a leitura. Para que você não tenha o mesmo trauma que eu, recomendo essa edição publicada pela Antofágica.
Conta aqui nos comentários se você já leu esse livro e o que achou dele. Aproveita para me contar se alguma professora chata já te obrigou a ler um clássico e estragou ele para você.
Minha mãe sempre teve alguns livros em casa e eu lembro de passar bastante tempo mexendo neles, procurando alguma coisa bacana para ler. Geralmente eu me apegava aos livros da coleção Literatura em Minha Casa, que minha mãe ganhou quando a biblioteca da escola onde ela trabalha doou os livros que não usavam o (não mais tão) Novo Acordo Ortográfico. Passeando por todas as capas e textos, eu sempre olhava de rabo de olho para um livrinho fino, da lombada roxa. Sempre espreitando, esperando que chegasse a vez dele. Nunca chegava, porque eu fazia questão de tampar sua capa colocando outro livro por cima e ignorava completamente o fato de que lê-lo era uma opção.
Aquela famosa frase "não julgue o livro pela capa" nunca funcionou aqui. Aquela lombada roxa trazia consigo um fantasma debochado, cujos cabelos se confundiam com a copa de uma árvore seca, em meio a letras amarelas que só faziam aquilo ficar mais e mais bizarro. Eu tinha pavor dessa capa. Lembro de ser uma criancinha medrosa, que chorava toda vez que, em um descuido, minha mãe deixava a capa daquele livro à mostra.
Se essa capa não faz você sentir uma coisa muito ruim, tá errado |
O tempo passou, o medo também, mas aquela lembrança amarga do ranço daquele livro me perseguiu. Dizia aos quatro cantos que a alta literatura brasileira era uma vaidade inacessível para grande parte do povo que faz parte desse país (e ainda penso isso) e que não merecia ser lida, muito menos digna de apreço. Sim, eu me sentia digna de achar Machado de Assis overated. E isso perdurou até o dia em que a professora de português da oitava série exigiu que a turma toda lesse o tal do Memórias Póstumas de Brás Cubas. E eu li.
E continuei achando uma bosta!
Hoje, depois de adquirir um pouquinho mais de conhecimento e a plena noção de que não sei porra nenhuma, consigo perceber a genialidade por trás dessa obra. A ironia, o escárnio, o desprezo pela condição humana e o deboche são trejeitos incrustados em mim de uma maneira tão marcante quanto estão nessa obra. Eu tinha tudo para amar esse livro, mas não amei.
E por quê? Porque minha professora de português me obrigou a ler o livro.
Lembro que essa professora chegava na sala e escrevia uma frase no quadro, do tipo "Maria e João foram à praça passear" e, em seguida, perguntava para a turma "Qual o sujeito da frase?". Eu era a única que sabia a resposta, porque era uma das poucas que estavam fazendo cursinho (gratuito!) para entrar na escola técnica. Uma vez ela pediu para que eu parasse de responder a essas perguntas e deixar os outros alunos tentarem, mas toda aquela dinâmica não era sobre tentar! Era sobre aprender! Mas ninguém aprendia naquela sala, nem em nenhuma das outras sete salas que tínhamos frequentado durante o ensino fundamental. Nessas salas, a lógica sempre foi mais sobre dar a resposta certa do que sobre aprender.
Se a gente não sabia qual era o sujeito da frase "Maria e João foram à praça passear", como íamos saber o que Brás Cubas quis dizer com o tal "ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico com saudosa lembrança estas memórias póstumas"?
Foto da réplica da biblioteca de Juscelino Kubitschek, no Memorial JK. |
Eu tiro duas conclusões principais desse post: 1) o ensino público no Brasil precisa ser repensado, não perdendo tempo com aquela merda de discussão idiota sobre escola sem partido (falha nos seus próprios termos lógicos), mas pensar as possibilidades metodológicas e propor uma mudança concreta nos conteúdos; e 2) gostar ou não de um livro está muito relacionado ao momento em que estamos vivendo. Obrigar um jovem que nunca teve contato com a leitura a consumir um livro clássico, com colocações e vocabulários que não são acessíveis a ele, pode fazer com que essa pessoa nunca mais queira ler um livro - da mesma forma que o mesmo jovem pode ler um livro juvenil e tomar gosto pela leitura (saudades série vaga-lume).
Para encerrar, gostaria de parabenizar o design que fez a capa desse livro: obrigada pelo trauma ¯\_(ツ)_/¯
Atualização (18/09/2021): não acho justo chamar esse livro de "uma bosta" como eu disse lá em cima. Hoje consigo enxergar o valor cultural do livro e a genialidade das alegorias que Machado de Assis colocou nesse livro. De fato, é uma obra excelente e muito divertida de ler - desde que você tenha maturidade para compreender a leitura. Para que você não tenha o mesmo trauma que eu, recomendo essa edição publicada pela Antofágica.
Conta aqui nos comentários se você já leu esse livro e o que achou dele. Aproveita para me contar se alguma professora chata já te obrigou a ler um clássico e estragou ele para você.
No ensino médio, eu tive um professor que decorou as primeiras frases desse livro. Ele sempre citava. Toda aula ele começava "ao verme que primeiro roeu (...)". Era péssimo.
ResponderExcluirOlha, de Machado de Assis eu só li O Alienista e alguns contos aleatórios, inclusive pra fazer trabalhos de psicologia, e sinceramente tive que correr atrás de resumos porque não entendi muita coisa. Complicado.
Mas olha, achei a capa desse livro UMA OBRA DE ARTE! Sempre que lembro do nome do livro penso em uns senhores de época com seus monóculos e essa capa quebra tudo isso. Achei sensacional, apesar de realmente cabreira.
Beijinhos.
https://afoolishmistake.blogspot.com/
Nossa, realmente essa capa é terrível. Hahaha! Trauma na certa.
ResponderExcluirEu sempre fui MUITO interessada em literatura, desde bem novinha, e graças aos deuses, nunca tive um professor que me obrigasse a ler nada (pelo contrário, eu lia tudo antes do semestre começar). Mas concordo que obrigar uma criança/jovem/adolescente que nunca teve contato com literatura brasileira a ler um clássicão, sem oferecer suporte, é complicadíssimo. E sim, gostar de um livro tem MUITO a ver com a fase que a gente está passando. Um beijo! :*
Acho que as obras literárias brasileiras nos são apresentadas no momento errado, eu, agora com 21 anos é que me sinto preparada para ler O Cortiço por exemplo, e ainda sim é uma obra que exige muito da minha concentração. Não é fácil e não é acessível, mas nem por isso devemos desprezar.
ResponderExcluirwww.estante450.blogspot.com
Só gosto do final, onde ele diz que não perpetuou sua desgraça no mundo. Tirando isso acho bem chato. Ele escreveu um conto bem legal, chama a teoria do medalhão.
ResponderExcluirA capa me deixou muito agoniada e fiquei feliz quando fui ler a postagem e tu disse ter sentido o mesmo DKSJDK
ResponderExcluirNunca li Brás Cubas porque meu interesse pela literatura brasileira só despertou mesmo esse ano (feliz ou infelizmente, sou amante incansável dos best-sellers mais vendidos do New York times), mas já vi tantas e tantas citações geniais do livro que é um dos que quero ler assim que der.
Sobre tua professora, eu concordo totalmente que foi uma abordagem super errada. Não sei se é porque estudo num instituto federal e a abordagem é meio diferente, mas nunca um professor nos exigiu a leitura de um clássico. Na minha opinião esses livros são importantíssimos, mas quando lidos no momento certo, com a capacidade de compreendê-los e de preferência sem aquela pressão de "preciso ler e decorar pra garantir essa nota". É por esse tipo de coisa que muitas pessoas pegam aversão pela literatura. :(