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    . 07 agosto 2022 .

    a morte (de Ivan Ilitch) é um dia que vale a pena viver

    . 07 agosto 2022 .



    A morte de Ivan Ilitch, ficção escrita por Tolstói em 1886, na Rússia. A morte é um dia que vale a pena viver, não-ficção escrita pela médica Ana Claudia Quintana Arantes em 2019, no Brasil. Muitas são as distâncias que separam as duas obras: o gênero, o tempo (133 anos) e o Oceano Atlântico. Entretanto, se colocarmos a ficção narrada por Tolstói à prova da realidade apresentada no livro de Ana Claudia, essas distâncias se dissipam - e isso é incrível. 

    Ivan Ilitch sabe que está morrendo. Seus parentes, amigos e médicos também sabem, mas fingem que não. A mentira ensaiada o irrita, de forma que a presença dessas pessoas o causam profundo incômodo. Como Ana Claudia pontuou em seu livro e nessa palestra, as pessoas que estão no leito de morte processam tudo muito rápido, pois não têm tempo a perder. Todo minuto que se passa é valioso e o "futuro morto" não quer desperdiçá-los com ladainhas e mentiras descabidas. Nem todo ser humano está preparado para ser digno do escasso tempo de um paciente terminal.

    Todos se levantaram, despediram-se e foram embora.
    Quando eles saíram, Ivan Ilitch pareceu sentir-se mais leve: não estava mais ali a mentira, ela tinha ido embora com eles - mas a dor ficara. A mesma dor, o mesmo pavor fazia com que nada fosse mais pesado, nada fosse mais leve. Tudo era pior.

    Outro aspecto salta aos olhos na narrativa de Tostói: a vida de Ivan Ilitch é medida a partir de sua utilidade [nesse momento, ouço gritos de "modernidade líquida", "Bauman, corre aqui" e "utilitarismo capitalista" vindos de uma plateia que só existe na minha cabeça]. Um de seus amigos mais próximos se preocupa com a possibilidade de ganhar uma promoção quando o cargo de Ivan Ilitch for "desocupado", sua esposa calcula o ordenado da pensão de viúva, sua filha teme que a doença do pai comprometa sua presença nos eventos sociais. Por mais nobre e bem-sucedido que Ivan Ilitch seja, o arrastar de sua vida serve apenas para despertar reações práticas nas pessoas mais próximas - e nenhum tipo de reação nos demais. A respeito disso, Ana Claudia nos alerta:

    Cultivamos a qualidade das nossas relações, e esse cultivo determinará se vamos desfrutar de boas companhias no fim da vida - ou se ficaremos sozinhos.

    Além da apatia dos mais próximos, da dor e da consciência da morte iminente, Ivan Ilitch é assombrado pela sensação de que desperdiçou sua vida. Sua carreira brilhante, seu casamento perfeitamente adequado, seus filhos promissores, o respeito intrínseco ao cargo que ocupa, o melhor círculo social possível, as agradáveis partidas de vint... Nada disso o salvou da sensação de ter perdido tempo, de não ter "vivido direito". 

    [...] começou a relembrar na imaginação os melhores momentos da vida. Mas (o que era estranho) todos esses melhores momentos de sua agradável vida pareciam agora totalmente diferentes do que tinham parecido até então. [...] tudo que então parecera uma alegria passava a derreter diante de seus olhos e transformava-se em algo insignificante e muitas vezes abjeto.

    Não tenho como afirmar, mas sinto que se Ivan Ilitch estivesse sendo acompanhado por Ana Claudia, ela o acolheria dizendo:

    Alguns arrependimentos são puro desperdício de tempo no fim da vida; não faz nenhum sentido que sejam causa de sofrimento. Muitas vezes, escolhemos um caminho que não sabíamos que seria ruim. Agora sabemos e nos arrependemos. [...] Não é justo nos condenarmos por ações passadas baseando-nos no conhecimento que temos agora.

    O acompanhamento médico não tem poder para mudar as escolhas tomadas durante a vida, mas certamente ajuda na elaboração do passado e na aceitação do processo de morte. Enquanto sociedade, ainda estamos longe de construir uma relação esclarecida com esse momento que - de forma antagônica, mas coerente - faz parte da vida. Mas, como Ana Claudia demonstra, existem profissionais empenhados em dissipar as distâncias.

    Um olhar descuidado pode nos levar a crer que esses dois livros versam sobre a morte. Não se engane: o tema central dessas narrativas é a vida. Morrer bem é uma forma de viver bem. Refletir sobre a morte não nos torna imortais, mas tem potencial para nos livrar de sofrimentos emocionais similares aos que Ivan Ilitch experimentou em seus últimos dias. O reconhecimento e o respeito pela morte nos conduzem a uma vida que vale a pena ser vivida.

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